Por falar em violência

O "GREP Disserta" é uma publicação quinzenal, fruto de debates do Grupo de Estudos em Psicanálise da Univiçosa.

Publicado em 28 de setembro de 2017

Luciana Torquato é Professora do Curso de Psicologia. Doutoranda em Psicologia (UFMG). É psicanalista e psicóloga clínica. E-mail: lucianatorquato.psi@gmail.com

Este é um espaço reservado para @s participantes do GREP - Grupo de Estudos de Psicanálise - debaterem quinzenalmente um tema levantado pelo grupo, algo que seja revelante e que enseje reflexão da comunidade acadêmica e da população geral sobre temas cotidianas e caros à psicanálise. A ideia desta coluna, portanto, é que @s própri@s estudantes se mobilizem a produzir uma reflexão pertinente e socialmente importante.

Isso foi feito nesta última semana. Todavia, o material produzido por algumas integrantes do grupo acabou não chegando à publicação por uma orientação minha- monocrática, confesso. Valendo-me de uma certa "autoridade postiça" a mim conferida na condição de orientadora do Grupo - ressalto que o trabalho que tenho com o andamento das atividades é ínfimo, considerando toda a dedicação e empenho d@s própri@s integrantes, a quem cito nominalmente e de forma especial: Karina Araújo, Karina Fialho e Nismaira Caetano, todas do oitavo período manhã do curso de Psicologia -, decidi que aquilo que fora produzido merecia ainda um tratamento conceitual e teórico, devendo, neste momento, ser engavetado para publicação em outra ocasião. Aproveito então esse espaço, que estaria vazio, para explicar o porquê desta - palavra que me causa espécie, mas que devo encarar - censura.

O texto das estudantes trazia o problema da violência em Viçosa, sobretudo considerando os atuais episódios de homicídios e crimes nas regiões centrais da cidade e certa mobilização da população local diante tais fatos. Para problematizar a questão, certa psicopatologia psicanalítica dos possíveis agressores é ensaiada pelas autoras que se valem do que Freud postulou como segunda teoria do aparelho psíquico, ou, simplesmente, da relação dinâmica entre Id (Isso), Ego (Eu) e Superego (Supereu). A minha consideração a respeito do texto e da não publicação imediata do mesmo é o que reproduzirei aqui. A minha ideia é de que esse material possa abrir esse debate, proporcionando elementos para uma discussão mais profunda, transdisciplinar e cuidadosa sobre o tema da violência, que considere as variáveis multifatoriais do problema, tirando da psicanálise qualquer tentativa pretensiosa de tentar explicar um problema tão complexo a partir de uma perspectiva simplista. A seguir, transcrevo - com algumas correções necessárias - o que retornei para o grupo.

Caras,

Agradeço pelo cuidado de me enviarem o texto. Acho louvável a iniciativa de integrantes do grupo se disporem a pensar a psicanálise e as questões sociais de forma articulada.

Todavia, penso que não se trata, do jeito que está formalizado, de um texto publicável no momento. A temática da violência é extremamente importante. Mas uma coisa me preocupa: quando falamos da violência em Viçosa, do jeito que está colocado, fica parecendo que isso só começou agora, que se trata de um problema emergente no momento e que, portanto, convida a comunidade acadêmica a se preocupar. A minha reflexão vai no sentido de problematizar essa urgência que se coloca agora. Há quanto tempo se morre e se mata fora dos olhos do grande centro? Foi mesmo agora, recentemente, que esses problemas começaram? Tenho medo de que uma publicação nesse sentido só faça corroborar com um pensamento elitista, que ignora que a violência nas cidades é um problema muito maior do que simplesmente a agressividade de alguns indivíduos.

A questão é que recentemente atos específicos de violência ocorreram fora das bordas imaginárias, fora das margens periféricas da cidade… e isso vem assustando muita gente que não está acostumada com operações e batidas policiais na porta de suas casas. Isso que se passa agora não é de hoje. Isso é um problema que a periferia conhece muito bem e desde muito tempo.

Essa situação faz lembrar daqueles atos típicos da zona sul carioca, em que famílias abastadas, vestidas de camisa branca (evidentemente que a cor seria branca) abraçam a Lagoa Rodrigo de Freitas para protestarem contra a violência. Ato similar àquele de várias famílias viçosenses que, com o mais honesto e profundo desejo de uma vida mais tranquila e digna para os seus e suas, saíram em passeata no campus da UFV na última semana, promovendo uma “caminhada pela paz”. Novamente, todos de branco. Geralmente, é preciso que um episódio de violência ocorra bastante perto para nos lembrar que ela existe todos os dias, mas em locais muito específicos.

Falar em atos criminosos, atos infracionais requer muito mais do que uma psicanálise do infrator, do criminoso. Requer uma análise profunda do campo social, da violência fundante das nossas relações e de nossa sociedade, das mais violentas do mundo. Não porque o brasileiro seja violento - essa categoria “brasileiro”por si só já é algo problemático -, mas porque nos organizamos socialmente assim.

A questão é que é fora das margens do centro, é nos espaços periféricos, que essa violência se dá. Não porque a periferia seja violenta naturalmente. Não há nada natural nisso que é uma construção social e histórica. Mas é justamente por faltar política pública de qualidade que a violência se instaura. E se é nas periferias que faltam serviços básicos,  são seus jovens, sobretudo aqueles negros, que estão sendo aprisionados, mortos, punidos, criminalizados. A quem e a que serve esse estado de coisas?

Não sei se a explicação que vai desde o conflito psíquico até a agressividade que Freud supunha no ser humano pode nos servir para falar disso. Talvez não seja o momento mais adequado. Correríamos o risco de parecermos elitistas e superficiais se falarmos da violência nas cidades considerando somente esse ponto de vista psicopatológico.

Entendem mais ou menos o que eu quero dizer?

Um abraço!

Luciana.